Sociedade

Duas travestis brutalmente assassinadas em menos de 24 horas escancaram escalada da violência

A violência urbana em Pernambuco alcançou, nos últimos dias, níveis que chocaram até mesmo uma população já acostumada a conviver com tragédias cotidianas.

Por Flávio José Jardim atualizado há 1 mês
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Duas travestis brutalmente assassinadas em menos de 24 horas escancaram escalada da violência

Em um intervalo de poucas horas, duas travestis foram assassinadas de forma brutal em diferentes municípios, em episódios que revelam não apenas a crueldade dos crimes, mas também a vulnerabilidade de uma parcela da sociedade historicamente marginalizada. O sangue derramado de Raquelly Letícia, no Recife, e de Rebeca, em São Lourenço da Mata, tornou-se um retrato fúnebre da transfobia e do desprezo pela vida.

 

Na tarde de sexta-feira (12), o bairro de Santo Amaro, no coração do Recife, foi palco de uma execução fria. Rodrigo Campos de Oliveira, de 24 anos, conhecido socialmente como Raquelly Letícia, foi morto a facadas dentro de um cinema erótico. O detalhe mais cruel: o assassinato aconteceu no mesmo dia em que completava mais um ano de vida. A comemoração planejada pela família se transformou em um velório carregado de dor, revolta e incredulidade. O local, frequentado por dezenas de pessoas, foi tomado pelo pânico diante da brutalidade da cena.

 

Segundo familiares, Raquelly vinha recebendo ameaças após uma briga dias antes. A polícia investiga a ligação entre esse episódio e o crime, mas, até o momento, não há suspeitos presos. O corpo foi encaminhado ao Instituto de Medicina Legal (IML), enquanto ativistas denunciaram mais um caso de transfobia explícita, lembrando que Pernambuco figura entre os estados mais violentos para travestis e transexuais. O grito sufocado da vítima, morto em pleno aniversário, ecoa como símbolo da negligência e do ódio socialmente legitimado.

 

Horas depois, o estado seria surpreendido por mais uma cena de horror. No município de São Lourenço da Mata, na região metropolitana, a tragédia ganhou contornos ainda mais bárbaros. Ramilson de Santana Alves, conhecido como Rebeca, foi encontrado junto de uma mulher não identificada em uma área de mata, amarrados com cordas e espancados até a morte. A crueldade dos golpes deixou marcas que desafiam até mesmo os profissionais mais experientes da perícia.

 

Populares, desesperados, tentaram salvar as vítimas. Uma delas chegou a ser transportada em uma carroça de mão, numa cena que mistura desespero e impotência diante do colapso da segurança pública. Apesar dos esforços, nenhuma das duas resistiu. O bairro de Nova Tiúma foi tomado pela indignação, e o clima de medo se espalhou como um veneno. A população local não compreende a motivação do crime, mas sente na pele o impacto da barbárie.

 

A Polícia Civil instaurou inquéritos para apurar as mortes, mas, até agora, as respostas não chegaram. O silêncio das autoridades só amplia a sensação de abandono. Para os movimentos sociais, o Estado brasileiro segue sendo cúmplice quando não garante proteção a quem vive à margem, exposto a preconceito, violência e execuções sumárias. Rebeca, assim como Raquelly, buscava apenas existir em sua plenitude, mas teve o destino interrompido pela violência implacável.

 

As mortes quase simultâneas despertaram um grito coletivo nas redes sociais. Ativistas, artistas e organizações de direitos humanos denunciaram a escalada do genocídio contra travestis e transexuais no estado. Pernambuco, mais uma vez, aparece nos noticiários nacionais não pela cultura ou pelas belezas naturais, mas pelo sangue de seus filhos e filhas, derramado em vielas, matas e becos. A cada corpo tombado, cresce o abismo entre discursos de inclusão e a prática de uma sociedade ainda marcada pelo ódio.

 

As famílias das vítimas vivem agora o pesadelo de enterrar seus sonhos interrompidos. No Recife, a casa que se preparava para a festa de aniversário se tornou cenário de luto profundo. Em São Lourenço, parentes e amigos de Rebeca se reúnem em busca de respostas que talvez nunca cheguem. O drama dessas famílias é o retrato de um país que se acostumou a banalizar mortes, principalmente quando os mortos pertencem às margens da sociedade.

 

O impacto desses crimes vai além das estatísticas policiais. Trata-se de vidas apagadas, histórias arrancadas pela raiz, sonhos sufocados pela intolerância. Enquanto as investigações seguem a passos lentos, o vazio deixado por Raquelly e Rebeca se torna mais um capítulo de uma triste crônica de sangue, escrita diariamente em Pernambuco. E o silêncio, talvez, seja a face mais cruel dessa violência — um silêncio que grita pela memória das vítimas.

 

Entre velórios e protestos, Pernambuco se vê diante de um espelho incômodo: o reflexo de uma sociedade que permite, a cada dia, que travestis e transexuais sejam caçados como se suas vidas valessem menos. O recado deixado pelos assassinos é de ódio, mas a resposta precisa ser de luta. Do contrário, Raquelly e Rebeca se juntarão a uma lista interminável de vítimas esquecidas, enquanto a barbárie segue sendo a linguagem oficial da intolerância.

 

trv
trv (Flávio/flaviojjardim.com.br)

 

 

 

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